Tuesday, October 31, 2006

Gracejos de uma despedida

Aquele era um dia daqueles em que se precisava acordar antes do mundo.
O rosto composto quase que por completo sono desfigurador frente ao espelho lhe dava bom dia e lhe trazia arrependimento por tantas carteiras de cigarro fumadas, garrafas de whisky, lagrimas seguidas por fortes contrações da face, sorrisos desperdiçados com meros ambulantes anônimos que elencavam sua rotina.
Fez a barba com a lâmina acariciando sua face e deixando-a com aparência alva e limpa.
Entremeados por bocejos na expectativa de um gole de whisky fazia a barba, a tremedeira foi tamanha que chegou a cortar-se com a navalha.
Lavou seu rosto como que para esconder sua face e vestir a cara que sua mente pretendia de si. Era de melhor grado.
Foi para a cozinha no silencio que necessitava para não acordar os fantasmas que sua família havia deixado por ali desde a noite anterior quando de súbito foi viajar. Pegou uma xícara de café frio, colocou no microondas e ao retira-la acrescentou uma dose de whisky. O café da manhã de campeão era imprescindível para aquele dia o qual se sabia obstinado há vários invernos atrás.
Sentou-se na mesa e contornando quase meia hora debruçado sobre a mesa com papel e tinteiro escreveu. Pegou um envelope pardo e colocou o anúncio dentro.
Saiu de casa caminhando lentamente pela rua, apreciando tudo o que praticamente havia se esquecido da existência, tal qual pássaros piolhentos que davam esplendidos rasantes; mendigos que não se sabia se estavam vivos ou mortos, mas pouco importava, só serviam mesmo para que o paisagismo fosse mais magnífico devido ao contraste que proporcionavam naquela rua; carros que soltavam fumaça cinza com cheiros desagradáveis que tanto apreciava quando era criança, quase tanto quanto o cheirinho de gasolina ao abastecer; cheiro de gente recém acordada cheirando a estresse-rotina-pressa-preocupação- o qual o fazia rir, pois essa a muito não era uma realidade que conhecia.
Por fim chegou ao final da sua rua, aonde encontrou uma caixa dos Correios aonde depositou aquele pergaminho moderno que havia sido elaborado com a presença de sorrisos, lágrimas, urros e risos consternados sem nenhuma preocupação com o clichê seguido pelos demais como sendo a santa sanidade. Voltou para casa e foi para seu quarto.
No final daquele mesmo dia chegam a casa sua mulher e filhas. Ainda na porta a mulher de conhecimento ostentado com ar de superioridade envolta pela echarpe do elegante anestesiamento de vida se inclina e junta do chão uma carta datada do mesmo dia, de remetente anônimo. Abre-a com certa irritação pelo fator incógnito, retira da bolsa seus óculos enquanto as duas irmãs enfileiram malas pelo corredor – obviamente eram muitas pois havia passado quase 24 horas longe de casa. Três mulheres, suas nécessaires e roupas que deveriam acompanhar o humor que houvessem de portar em cada momento.
Ela começa a ler a carta enquanto um rubor vai tomando conta de sua face, o sangue em seus olhos se aquece, enquanto as duas irmãs percebem, mas dando de ombros continuam na via sacra da futilidade. Então, com lágrimas dançantes e soluços a carta começa a ser anunciada:
“ Não sei quem lê esta carta no presente momento, mas caso seja minha caríssima esposa peço desde já que se acalme e siga minhas instruções. Caso seja minha filha mais velha, peço desde já que devolva a carta para sua mãe pois é falta de educação arrancar coisas da mão das pessoas, mesmo se tratando de sua arrogante mãe. Caso seja minha filha mais nova, gostaria de ter certeza de que realmente és minha filha, mas não o tenho, portanto, que assim seja; devolva a carta para sua irmã mais velha para que esta por sua vez possa devolve-la à sua mãe acompanhada por uma pedido de desculpas que não espero e sei que não haverá de ser sincero pois sinceridade é algo com o qual nunca me deparei na presença de vocês.
Peço que chamem imediatamente nossa empregada, e, por favor, não acreditem quando ela lhes disser entre lágrimas que mantivemos um caso por mais de vinte e cinco anos em segredo, o qual resultou duas filhas – embora seja mentira o que ela lhes contará ainda acrescento que aquelas meninas não são minhas também. - peça que faça a limpeza com esmero e que pelo menos desta vez não me xingue como a um cão. Enquanto ela não chega, por favor, peguem baldes com água sanitária, panos (muitos, muitos mesmo.), e o vidro de chanel nº 5 de minha excelentíssima esposa para expurgar com estilo o cheiro de defunto deixado no quarto, pois aquele poodle que sempre odiei deve estar fedendo mais do que o de costume. Fui embora e não pretendo mais voltar. Pode me difamar à vontade!
Subiram as três as escadas trovejando elogios tais como “filho-de-uma-cadela-puta” “bêbado recalcado” “inimigo dos animais... digo... Veado dos infernos” “maldito desgraçado” “ignóbil retardado!” “Te odeio”. E outros clamores ao suposto fugitivo familiar.
Quando a porta se abre o que se vê é um poodle amarrado pela coleira de um lado da cama e muito sangue, mas de súbito o poodle se acorda e nota-se que aquele sangue não era dele. As três então fazem a volta até o outro lado da cama e encontram o querido e adoravel ente com ambos os pulsos cortados, várias cartelas de remédios controlados esvaziadas e com o crânio perfurado por um tiro.
Nunca se soube se o que se ouviu foram a potencialização progressiva dos gritos de desespero, gritos em constância ou se foram risos e gargalhadas. A mosca não acompanhou a história toda, pois ficou ansiosa para contar a todo mundo o que havia presenciado.

Sunday, October 22, 2006

Descanso

-Já perdi a fala e agora o que me resta é somente a voz do olhar. Já travei meus passos, não sou mais forte, sou escasso, nem ao menos consigo gritar. Meu bom senhor, querido amigo. Não posso mais estar convosco. É passada a hora, só me resta ir embora, ainda no espaço do agora preciso encontrar a luz pra me guiar. Nada posso dizer, mas imploro: Por piedade, lê meus olhos. Eles gritam não vês? Minha voz está toda neles, e infelizmente é a única maneira que tenho para berrar.
Os olhares se entrecruzaram no quarto. Seis olhos. Muitos olhares. Dois olhos castanhos, dois olhos verdes e dois olhos em lágrimas.

- Doutor, faz tempo que eu irmão aqui reside, para mim é estranho admitir, mas com a alma em pedaços agora admito para mim mesma que não há nada a se fazer. A cura não existe. Irreversível é o que é. Vegetas? Vegetal era a violeta que eu trouxe na semana passada para cá. Ele não é mais nem isso. A violeta floresceu, ele nem isso. Ontem a violeta morreu, ele... Nem isso.
- Não posso dizer que imagino ou que sei como se sentes, não seria eu mesmo se o dissesse. Ele sofre nesta morte viva. Você sabe, percebe. Normal você culpar o karma, destino, traços do desenho da vida, acaso, ou até mesmo a inexistente explicação que não se revela, os braços atados e o que mais houver.

Naquele momento a moça triste olha os olhos em água do que estava deitado em gritante sofrimento mudo, então respira fundo. Solta um suspiro da alma, sem nem ao menos perceber, seca o rosto. Arruma os cabelos. Da um sorriso de entendimento ao médico e ao ente. Há tempos não sentia lucidez e leveza.
- Me olhem! Ouçam meu olhar! Cansei de constantemente continuar. Como dizer que “o nada” continua? Nada nem existe, nada não vive! Nada não é nada, e é isso que sou.
Meu único pertence realmente meu dentre tudo o que tenho é a espera. Espero não mais ter que esperar. Tira-me o peso dos ombros. Nem ombros e nem peso sinto. Não sou homem, nem ao menos mito.

O médico consente. O médico deixa a sala.
Agora ali apenas havia os olhos da irmã, e os gritos que piscavam lentamente em desesperada súplica.
Agora ali estavam apenas os lábios e a testa, o beijo. Dois olhos fechados. Agora só um suspiro de alivio.
Dois olhos se abriram uma lágrima correndo, encontrando o lábio que sorria. O outro olhar não mais se mostraria, nunca mais gritaria. Ao som do bip constante do aparelho que em um só toque contínuo revelava que o olhar não se mostrava, pois o coração não mais batia.
Agora e por bem só um olhar que chorava sorria. O outro partira e talvez em seu alívio e descanso, longe da matéria também sorrise.

Monday, October 16, 2006

Doce Fama

Lá estava ela, havia acordado há pouco tempo e agora estava na sacada frente ao janelão que aberto iluminava plenamente bem o quarto com aqueles preguiçosos e envergonhados raios de sol. Mas aquele dia, embora o sol deixasse a cidade bem clara estava frio, ventoso e úmido.
Ela sorria, sentindo o vento em seus longos cabelos pretos, revoltos na liberdade do ar feliz de mais um dia.
Mais um dia feliz, e fazia bem poucos dias que ela começara a sentir-se assim. Nunca houvera sentido.
Sentia-se amada, por saber que agora várias pessoas pensavam nela. Algumas constante e intensamente. Ela agora era parte da vida de muita gente. Nunca antes houvera sido.
Fora criada em uma família desunida, violenta e sem amor.
Pouco antes de ir para a janela sentir o vento e ver que havia começado mais um dia em que ela era quista por várias pessoas desesperadamente; quando acordou viu sangue nos lençóis brancos e se assustara. Dirigira-se frente ao espelho para ver se via em seu corpo algum motivo ou lugar de onde aquele vinho havia saído, porém acalmou-se e sorriu, pois nada encontrou. Foi então que foi para a sacada.
Ao sair da sacada, foi até a mesinha ao lado da cama, abriu uma gaveta de onde tirou três vidrinhos: Um de analgésico, um de aspirinas e um outro de uma amostra grátis que havia pegado durante um descuido na última consulta que tivera com seu médico. Abriu-os e tirou dois comprimidos de cada frasco. Não estava sentindo nada, pelo contrário, estava muito bem, mas previa que alguma dor irritante pudesse vir a lhe atormentar a qualquer hora. Portanto, por que não?
Pegou o copo que estava sobre a estante ao lado de algumas revistas – revistas que tratavam do cotidiano de celebridades. Fofocas – que comprou pensando que nada impedia que ela fosse motivo de alguma matéria em algumas delas. E por que não a capa?
Afinal de contas tanta gente a queria, tantos gostariam de saber mais sobre quem era. Bebeu e engoliu os comprimidos. Tão bonitinhos!
Então começou a se vestir para aquele dia. Frente ao espelho. Admirando a bela face e formas que eram tão desejadas. E cada vez haveria de ser mais e mais. Que deus lhe ouvisse!
Vestiu meia-calça escura, uma saia preta, uma blusa branca com mangas compridas e gola role. Colocou o sapato com o maior salto que tinha – afinal de contas merecia sentir a sensação de elevação. Algo como um pedestal – também luvas pretas com detalhes de strass nas costas das mãos. Ela adorava luvas, pois a faziam sentir-se muito mais segura, mais aquecida. Mais segura, definitivamente.
Foi até a sala aonde se dirigiu direto para o barzinho, pegou uma taça e serviu-se de Martini (com uma azeitona).
Sim, era de manhã, era cedo, mas ela era praticamente uma celebridade, portanto, podia ser excêntrica.
Sorveu o Martini de uma só vez. Sorriu. Pensou. Saiu.
Foi até a porta do apartamento ao lado do que estava e tocou a campainha sem exitar.
A porta se abriu e uma mulher lhe atendeu.

- Bom dia! O que deseja?
-Bom dia! Sou Ofélia, sua vizinha. Me mudei ontem pra cá e resolvi conhecer a vizinhança. Moro no 201.
- Oh, é um prazer! Sou Eneida. Não sabia que o senhor Carlos havia se mudado, mas tanto faz, nunca tivemos contato. E para dizer-lhe a verdade, nunca gostei muito dele. Será bom tê-la como vizinha; espero que venhamos a nos dar bem. Moro sozinha, será bom ter uma amiga por perto.
- Ah, com certeza nos daremos bem – Sorria.
- Já tomou café-da-manhã? Gostaria de me acompanhar?
- Será uma honra!

Eneida fez sinal para que Ofélia passasse para dentro do apartamento. Ofélia foi entrando. Eneida fechou a porta.
- Importa-se se tomarmos o café na cozinha?
- De maneira alguma.

Quando Eneida se virou rumando à cozinha esperando que Ofélia lhe seguisse sentiu que as mãos de Ofélia estavam em seu pescoço. Ofélia apertava bem forte, Eneida relutava desesperadamente e não podia gritar. Ofélia soltou-lhe o pescoço e rapidamente cravou-lhe um punhal de prata nas costas. Deixou-o lá. Voltou a apertar o pescoço da mulher e assim o fez até que dela não ouvia e não sentia nada além do silêncio de quem parte.
- Agora mais gente vai me querer! Eneida, minha mais nova ex-futura-vizinha-amiga, fará companhia ao senhor Carlos no banheiro do quarto dele.

Após algum tempo saiu pela porta de entrada daquele prédio.
Era inverno, mas ela estava com uma alegria primaveril no rosto e qualquer um podia notar.
Estava frio. Esfregando as mãos olhou as luvas e disse:
- Como é bom sentir-se segura.
Abriu a bolsa, pegou dois comprimidos de cada frasco, daqueles que havia posto na gaveta ao lado da cama na noite passada. Tirou também uma garrafinha de whisky – daquelas miniaturas que dão em aviões e quartos de hotel -, tomou os comprimidos com aquele whisky.

Foi direto ao táxi que estava estacionado bem próximo.
- Para onde, senhora?
- Ainda não sei. Vá dirigindo para qualquer lugar enquanto decido.
- Sim, senhora.
- Pode me chamar de... Patrícia. E é senhorita! – Sorriu
- Pois bem, Dona Patrícia.
Você é tão bonito! Já sei para onde ir. Você mora por perto?